“O Brasil não gosta de se auto elogiar”. É
assim que Daniel Balaban, diretor do Programa Mundial de Alimentos da
Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, começa a responder
perguntas sobre a política brasileira de alimentação nas escolas.

Apesar dessa espécie de modéstia nacional, as Nações Unidas
reconhecem o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) como um
“dos maiores e melhores projetos de alimentação escolar do mundo”, disse
Balaban.
Oficialmente, o projeto completou 70 anos. Mas, para o
representante da ONU, ele ganhou destaque a partir de 2009. Foi quando
entrou em vigor a lei que definiu os parâmetros do tipo de comida que
deveria estar nas escolas, tirando espaço dos biscoitos açucarados para
colocar refeições completas no lugar.
Foi também em 2009 que Fernando Luiz Venâncio deu uma guinada na
carreira. O colega que cuidava da cozinha da empresa onde trabalhava
saiu de férias e Fernando, até então metalúrgico, se ofereceu para ficar
no lugar. Nunca mais saiu de perto das panelas.
Hoje, ele chefia a equipe responsável pelas três refeições servidas
todos os dias para os mais de 400 estudantes da Escola Johnson, em
Fortaleza, no Ceará. Uma escola de ensino médio em tempo integral.
No cardápio há pratos como baião de dois, carne picadinha, farofa de ovo e o aclamado creme de galinha.
>> Siga o canal da Agência Brasil no WhatsApp
Peito de galinha
“O creme de galinha não posso trocar por nada”, diz Fernando. Feito
com peito de galinha desfiado e caldo de legumes, o prato não passa
perto de ingredientes como creme de leite. “Não pode. A gente não usa
isso, não usa queijo, nada disso”, diz Fernando.
A restrição não é aleatória. A comida tem que atender todos os
estudantes, incluindo os que têm restrições alimentares. “A gente não
pode fazer uma comida para dez e outra para 400. Tem que fazer para todo
mundo, todos devem comer, tem que gostar e sem passar mal”, avalia.
Mas não é o Fernando quem define o que entra no cardápio. “A
nutricionista passa para a gente e a gente tem que trabalhar em cima do
cardápio”, enfatiza. A presença de nutricionistas no espaço escolar é
uma das exigências de uma lei de 2009 que transformou merenda em
refeição. Os cardápios precisam atender às necessidades nutricionais,
estar conectados à cultura local, priorizar alimentos preparados na
própria escola, restringir ao máximo de 15% a presença de
ultraprocessados e privilegiar alimentos da agricultura familiar, com no
mínimo 30% de alimentos com essa origem.
Do campo para a escola
“De tudo o que eu produzo, 30% vão para a merenda escolar”, afirma
Marli Oliveira, agricultora familiar. No sítio de 6,5 hectares, em
Ocara, no Ceará, ela cria galinhas caipiras, porcos, ovinos e abelhas.
Mel, ovos e carnes que não vão para o Pnae, ficam nas vendinhas do
município. Mas a venda garantida para as escolas “faz diferença na vida
do agricultor, principalmente nos pequenos municípios, já que a renda é
praticamente da agricultura”, explica Marli.
Um levantamento do Observatório da Alimentação Escolar (OAE)
traduziu em números o que é fazer a “diferença”. O estudo mostra que,
para cada R$ 1 que o Pnae investe na agricultura e na pecuária familiar,
o Produto Interno Bruto (PIB) nacional cresce R$ 1,52 na agricultura e
R$ 1,66 na pecuária.
Marli Oliveira, agricultora familiar, fornece ovos, mel, carnes de galinha, porco e ovinos para o Pnae no Ceará - Foto: Marli Oliveira/Arquivo pessoal
A partir de 2026, a participação da agricultura familiar no Pnae pode
chegar a pelo menos 45%. Alteração aprovada pelo Congresso Nacional
pode ser sancionada pelo presidente Lula. Luzia Márcia, que é assentada
da reforma agrária e produz castanha de caju em Chorozinho, no Ceará,
comemorou a mudança. Ela ainda não fornece para o Pnae. “A gente até
concorreu recentemente. Infelizmente, pela questão da pontuação, a gente
não passou”, assegura.
Com o aumento da demanda, ela espera conseguir abrir a porta: “o Pnae
é muito importante porque o escoamento da produção é um dos maiores
gargalos do agricultor hoje. Não é só produzir, mas é onde eu vou
colocar minha produção?”.
Tipo exportação
Entre os dias 18 e 19 de setembro, o Brasil sediou a 2ª Cúpula da
Coalização Global pela Alimentação Escolar, que reuniu representantes de
mais de 90 países que se comprometeram a garantir comida de qualidade
para mais de 700 milhões de estudantes até 2030.
Foi lá que a ministra da Educação de São Tomé e Príncipe, Isabel
Abreu, falou da cooperação com o Brasil. “Nossas nutricionistas foram
formadas online com nutricionistas do Brasil e tivemos o apoio
de uma nutricionista brasileira que ficou conosco três anos a orientando
como confeccionar a refeição”, assegura Isabel. São Tomé também tem
sido seguido no princípio de colocar alimentos locais dentro da escola.
Hoje, no Brasil, o Pnae atende 40 milhões de estudantes todos os dias, da creche ao EJA (Educação de Jovens e Adultos.
“O programa ajudou o Brasil a sair do Mapa da Fome da ONU,” observa
Daniel Balaban. “Se você não tivesse comida na escola, você deixaria em
insegurança alimentar grande parte desses 40 milhões de alunos. Para
muitos, a principal refeição do dia é na escola”, enfatiza.
Desafios
No entanto, apesar dos elogios, tocar o Pnae no dia a dia é tarefa cercada de desafios. Em 2025, o orçamento do programa foi de R$ 5,5 bilhões.
O repasse por dia por estudante variou de R$ 0,41 para alunos do EJA
até R$ 1,37 para creches e estudantes do ensino integral. Mas, antes do
último reajuste, em 2023, os valores ficaram congelados por cinco anos.
Além do repasse federal, estados e municípios precisam complementar o
valor com recursos próprios. Mas, nem sempre isso acontece. Segundo o
Observatório da Alimentação Escolar, mais de 30% dos municípios das
regiões Norte e Nordeste do Brasil não fazem isso.
Em outro levantamento, o OAE ouviu nutricionistas do Brasil para
saber se eles conseguem cumprir as exigências nutricionais do programa.
Praticamente a metade (47%) disse que não e apontou os problemas.
Entre os mais frequentes estão a falta de estrutura para o preparo da
alimentação, a resistência das famílias e dos profissionais de educação,
a inflação dos alimentos, o orçamento curto e a falta de profissionais
de nutrição e de cozinheiros e cozinheiras.
Alimentação escolar
Para Albaneide Peixinho, presidente da Associação Brasileira de
Nutrição, esses problemas são reflexo de como os gestores públicos
seguem entendendo a alimentação escolar.
“Infelizmente, a visão que a maioria dos gestores ainda tem é de que o
programa se chama ‘merenda’. Ele é apenas um lanche rápido do ponto de
vista do conceito da nutrição. [Eles] entendem como um programa
assistencialista e acham que é um grande favor que estão fazendo”,
acentua.
Albaneide coordenou o Pnae durante 13 anos e fez parte da
equipe que elaborou a lei de 2009 que está tentando enterrar essa ideia
da merenda. Se contrapondo a essa noção antiga, ela lembra de outro
ingrediente que diferencia o Pnae: “esse é um programa pedagógico de
promoção à saúde. A formação de hábitos saudáveis é tão importante
quanto a oferta das refeições que contribuem para a melhoria do
ensino-aprendizagem”. E finaliza: “apesar de entender que o
Pnae é uma referência mundial, porque está na Constituição, algo que
muitos países não têm, ainda há muito a avançar”.
* A repórter viajou a convite do MEC